Ter Dentes Ajuda ou Atrapalha?

Comecei o dia lendo uma reportagem do Diário de Pernambuco que continha uma frase que, por motivos óbvios, chamou minha atenção:

“Tenho medo de dentista. Quando tira, acaba o problema”.

A opinião é de Ana Maria Martins, 48 anos. Ela tem 9 dentes naturais, os de cima já se foram todos há mais de 25 anos. Dos que sobraram, um deles está doendo. Quando for ao dentista pretende arrancá-lo, assim como os outros 8. Pra “resolver o problema” de uma vez.

Um problema a menos?

A Dona Ana Maria é filha de desdentados. Sua mãe, aos 80, já nem lembra o que é ter dentes e usa a mesma prótese há 30 anos. Mas seu único filho, aos 25, está convicto: não será um desdentado. Há quanto tempo ele não vai ao dentista? 15 anos. E a Dona Ana Maria não deixa de sorrir por causa disso, e ainda faz graça: “Imagine eu, aos 50 anos, indo extrair dentes…”. Ela considera cada um dos seus dentinhos um sobrevivente. Duraram até demais.

Refletindo um pouco a respeito: ter dentes atrapalha ou ajuda? Taí uma pergunta para a qual eu sempre tive a resposta certa… mas, depois de conhecer algumas histórias como a da nossa personagem, já não tenho tanta certeza.

Vocês sabiam que em algumas localidades rurais, aquelas bem isoladas do meio urbano mesmo, extração dentária é dote de casamento? Funciona assim: o pretendente se interessa pela moça. Aí ele pede pro pai dela pra namorar (ela. Não o pai.) ;). Depois de um tempo eles ficam noivos. Aí, pouco antes do dia do enlace, a moça segue pra cidade mais próxima pra procurar um dentista que lhe arranque TODOS os dentes, e ponha duas dentaduras. Assim, ela nunca mais dará despesas ao marido. Não despesas odontológicas, pelo menos.

Esse tipo de história assusta, né? Já ouvi isso de 2 ou 3 senhoras no meu consultório. “Antigamente era assim, minha filha. Eu tinha só uns 15 anos quando meu pai me mandou arrancar tudo!”. Se era assim ANTIGAMENTE, até que estamos no lucro, não?!

Não.

Segundo a mesma reportagem, o tratamento odontológico público disponível para a população, em algumas localidades, não cobre 4% da demanda. Das 3.637 equipes de Saúde Bucal que deveriam existir no estado de Pernambuco (e eu só estou falando de Pernambuco porque é o foco da reportagem. Outros estados brasileiros também padecem do mesmo problema, principalmente nas regiões Norte e Nordeste.), só 1.184 já foram implantadas segundo a Secretaria Estadual de Saúde. Em 82 cidades pernambucanas, a cobertura do programa de Saúde Bucal não chega a 50% da sua população. Todos os dentes da Dona Ana Maria foram extraídos em dentista particular, de 2 em 2.

Gente… tá faltando dentista? Onde eles se escondem? Tanta gente fazendo concurso público…. Eles estão nos grandes centros urbanos, onde existem condições de trabalho e infraestrutura, mesmo que não sejam, ainda, as ideais. E dá pra culpá-los? Se você acha que dá (ou não), opine a respeito nos comentários.

Lá em São Lourenço da Mata, onde a Dona Ana Maria mora, dentista é luxo. De quem nunca teve orientação nenhuma sobre higiene bucal, acha que ter dentes naturais aos 50 anos é algum tipo de record e só esteve em um consultório odontológico pra arrancar dentes, “de 2 em 2” como ela mesma conta, eu não esperaria outra opinião a não ser: dente só atrapalha. Discorda dela?

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Categoria: Profissão: Cirurgião-Dentista

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6 comentários

  1. Sou um cirurgião-dentista do interior e sei bem dessa realidade. No “interiorzão” de Goiás é comum a opinião dos mais velhos que dentes só atrapalham. Quando fazemos planos de tratamento pra um dente que fica acima de R$ 1.000,00, é quase unânime a pergunta: “E quanto fica pra arrancar?”. Na minha humilde opinião, faltam dinheiro e informação, principalmente o primeiro. Alguns até querem salvar o elemento dental, mas esbarram na falta de recursos. Ainda tentamos fazer condições, mas é melhor se ver livre da dor de uma vez por todas que assumir um compromisso e eventualmente dar o cano no dentista.

  2. Tenho irmão e cunhada que trabalham no interior da Bahia, cidade bem pequena, e adoram a vida que levam…teem clínica particular muito bonita, bem montada e bem sucedida, que não aceita convênio, nenhum dentista da cidade, aliás, não precisam, o serviço público, do qual os dois são funcionários, é eficiente e de qualidade. Os dois são pós graduados, fizeram seus cursos fora de lá, obviamente, e os filhos teem que estudar fora, a partir de certa idade. Acho que é uma questão de escolha do modo de vida que se quer ter… Bjs, parabéns pelo blog!

    1. Fico muito feliz em saber, Jeorgette! É sempre bom conhecer exemplos de colegas bem sucedidos e de serviços públicos de saúde que funcionam bem. Obrigada pela visita e pelo comentário. Abraço! 🙂

  3. Vem cá.. a dentadura entra no inventário depois??? 😛

    Falando sério, a realidade para muitos brasileiros, infelizmente, não é das melhores. Por mais que a gente insista, a Odontologia acaba sendo um item supérfluo pra muita gente. Sem trabalho, sem vida digna, sem assistência básica, quem é que vai se preocupar com dente? Tá doendo? Tira logo! É um aborrecimento a menos… 🙁

  4. Essa história de trabalhar ou não no interior é meio complicada.
    É do conhecimento de todos que os salários nessas regiões são melhores, mas a falta de condições e estrutura pra trabalhar é um quesito que desestimula os dentistas a irem pra esses lugares, e isso acaba sendo um agravante, levando-se em conta a questão da biossegurança na odontologia.
    Eu sinceramente não sei oq eu faria, eu ficaria muito em dúvida se iria ou não.

A área de comentários / perguntas está fechada. Agradeço a compreensão.

No plantão: Ana Tokus

Cirurgiã-dentista graduada pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Radiologia Odontológica e Imaginologia pela ABO-PR, convicta de que medo de dentista se combate (também) com informação. Diva-Boss do OdontoDivas e autora do Blog Raios Xis. Twitter: @AnaTokus e @medodedentista