Estreou no primeiro dia de 2019 o filme da Netflix A Raiz do Problema (Root Cause), que conta a saga de um homem em busca da razão dos seus vários problemas de saúde, que vão desde o desânimo e a fadiga até à impotência sexual. O filme dirigido por Frazer Bailey – o próprio homem adoentado – já sugere em seu título o motivo das mazelas: o problema está na raiz… mais especificamente na raiz de um dente seu que teve o canal tratado há 10 anos.
O Diagnóstico
Durante esse tempo todo nosso herói (!) procurou vários médicos e tentou todo tipo de terapia – algumas bem alternativas -, mas seu corpo não reagia e ele continuava se sentindo doente. Até que um “especialista” (não identifiquei sua área de atuação, por isso as aspas) munido de uma antena Lecher – uma espécie de forquilha de procurar água dos tempos modernos – acabou fazendo o diagnóstico: um dente com tratamento de canal. Bastou uma gotinha de sangue e algumas perguntas feitas à tal antena e voilà.
É emocional? NÃO. É um parasita? NÃO. É um tratamento de canal infectado? SIM“. A antena se moveu. A partir daí, com a causa identificada, bastaria se livrar da infecção… portanto, do dente.
E a ciência, o que diz?
A busca de Bailey por respostas é legítima. “What’s wrong with me?”, ele se perguntou diversas vezes. Podemos culpá-lo? Mas, cá entre nós… não foi uma investigação lá muito séria. Foi sim uma “caça às bruxas”, com evidente necessidade de provar algo que ele tem certeza que é verdade – ou foi plenamente convencido disso -, porém não tem respaldo na ciência. Não na ciência oficial.
O embasamento “científico” está no testemunho de alguns médicos e dentistas, os quais citam certas pesquisas. Essas pesquisas podem existir, não tenho razão pra duvidar… existem pesquisas a favor e contra qualquer coisa que se queira, pode procurar. Mas não se define muito bem onde foram publicadas, qual o método, a relevância das amostras, etc. Tudo é muito óbvio, mas apenas para esses poucos esclarecidos. Parte-se do princípio que tais estudos são a prova concreta do que se fala, o elo perdido da Odontologia. E o filme todo obedece essa premissa.
Certeza: 100%
As afirmações feitas durante o filme são contundentes, e sempre baseadas em pesquisas onde quase 100% da amostra comprova o que se quer provar. Por exemplo, diz-se que 98% das mulheres com câncer de mama têm tratamento de canal. É um número alarmante, não? Não. Seria o mesmo que dizer que 98% dos brasileiros que são fãs da Anitta gostam de sorvete de chocolate. Pode até ser verdade, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. É preciso provar a correlação entre as duas coisas, o que não se faz em momento algum. A “prova” está apenas no depoimento de alguns médicos que afirmam que problemas crônicos de saúde têm etiologia dentária em quase 100% dos casos. Por quê? Porque eles estão dizendo. E olha, eles dizem de um jeito bem convincente… qualquer desavisado compra a ideia.
Já sabemos disso faz tempo!
Há décadas nós dentistas procuramos mostrar a correlação entre a boca e a saúde do organismo e não nos levam muito a sério. A separação histórica entre Medicina e Odontologia é uma temeridade! Aí diz-se durante o filme que “… as escolas de Odontologia veem o boca como um manequim, como se tudo que acontecesse na boca não tivesse qualquer efeito sobre o resto do corpo” e UAU, porque quem diz é um médico de cabelos brancos e uma gravata bonita? Também que “… 70 a 90% dos problemas de saúde têm origem na boca, mas a Odontologia convencional ainda não entendeu isso”.
Querido leitor, a Odontologia convencional (expressão usada pejorativamente o tempo todo) conhece essa conexão há muitos anos! O fato de que problemas bucais podem complicar a saúde geral de uma pessoa é algo que nem está em discussão! Querem um exemplo bem brasileiro? O Hospital Regional de Ceilândia (HRC) alcançou índice zero de pneumonia associada à ventilação mecânica em pessoas internadas na UTI Adulto. Como? O número é resultado do trabalho, iniciado há aproximadamente seis anos, de integração de cirurgiões-dentistas para cuidar dos pacientes em estado crítico. Não me parece coincidência…
Enfim.
Odontologia démodé
Fica bem clara durante o filme a intenção de separar a Odontologia convencional, essa antiquada, que a gente aprende na faculdade, da Odontologia holística ou biológica, da qual apenas poucos iluminados entendem. É discriminatório. “Dentistas convencionais” não sabem de nada, não têm senso crítico, apenas repetem mecanicamente o que lhes foi ensinado. Todos estão errados, mesmo que milhões de artigos científicos embasem sua conduta. Uma dentista, em depoimento, chega a afirmar que “… nunca fui ensinada na faculdade que a infecção residual de um canal tratado poderia causar mal ao paciente”. Moça, queime o seu diploma, por favor. Gratos.
A Cura
Voltando à busca pela Raiz do Problema. Bailey tentou de tudo pra se sentir melhor. Estudou sozinho, leu livros, ouviu podcasts, fez buscas no Google. Submeteu-se à acupuntura, à homeopatia e a outras terapias BEM menos convencionais que essas. Mas seu problema só foi (quase) resolvido quando ele, finalmente, procurou um dentista biológico (um dentista “que sabe o que está fazendo”, como foi definido) e extraiu seu dente tóxico: um dente com canal tratado. Mais de 10 FUCKING YEARS sem ir ao dentista. Aí o colega (não sei se posso chamá-lo assim, porque ele é biológico e eu convencional) faz uma radiografia, descobre uma rarefação óssea periapical e eles decidem juntos extrair o dente com a infecção persistente. Taí uma bela evidência da importância de ir ao dentista periodicamente, caro Bailey!
Quando o cara achou que estava curado, já começando a se sentir melhor, fez uma reavaliação do seu fluxo de energia e foi informado de que quando extraiu o siso, anos antes, o alvéolo não tinha sido bem curetado (teria ficado ligamento periodontal infectado lá dentro)… resultado: bactéria bloqueando fluxo de energia. Dentista convencional só faz m*. Tem que limpar.
A explicação dada para a cura de Bailey: toxinas do tratamento de canal (e do ligamento periodontal do siso extraído), responsáveis por manter a infecção, estavam supostamente inativando enzimas do ciclo de Krebs (Nossa Senhora da Bioquímica, rogai por nós!); por consequência, as células não conseguiam fabricar energia e isso levava à fadiga crônica. O dente com canal tratado (OU o siso extraído sem a remoção completa do ligamento periodontal OU um implante de titânio) representa um ponto de bloqueio do fluxo de energia / eletricidade pelo nosso organismo. Basicamente, o que diz a Medicina Tradicional Chinesa.
Outros casos
Outros casos de cura pela remoção do bloqueio do fluxo de energia também foram relatados:
Uma paciente de uns 40 anos tinha implante, foi localmente anestesiada por um médico e melhorou instantaneamente da dor nas costas (ela usava uma bengala pra andar, inclusive). Posteriormente o implante de titânio foi removido e ela ficou definitivamente curada.
Outra paciente, essa com problemas renais, de 19 anos, foi convencida a extrair um incisivo central com tratamento de canal… e seus rins voltaram a se comportar normalmente. Seu sorriso ganhou uma ponte fixa adesiva.
Um dentista holístico nos conta que extraiu um terceiro molar ainda na faculdade, e que 30 anos depois desenvolveu uma arritmia cardíaca. O motivo? Uma cavitação, neoformação óssea deficitária supostamente causada pela não remoção de todo o ligamento periodontal infectado do alvéolo. Como ele sabe? Ele apenas sabe, já que pelos terceiros molares passa o meridiano do coração. Feita a “limpeza” do local com remoção de osso e aplicação de ozônio, sauna de infravermelho pra “suar” as toxinas cancerígenas, suplementação alimentar, vitaminas, exposição a campos magnéticos… resolvido. Adeus arritmia.
Um dentista holístico afirma que curou o câncer de garganta estágio 4 de um paciente extraindo 2 dentes com tratamento de canal e fazendo homeopatia. Um médico homeopata conta que diagnosticou um paciente antes mesmo de tocar nele: “Você tem insônia, fadiga e dores crônicas”. O paciente: “Nossa, como você sabe disso tudo?”. “Sei porque você me disse que tem um tratamento de canal”. Sério.
Aceita que dói menos!
Algumas afirmações feitas durante o filme (não foram citadas as fontes):
“Não existe na Medicina órgão morto que seja mantido”. (ué, mas nem todo tratamento de canal é feito após necrose pulpar… o do Bailey não foi. E a linha de raciocínio do filme se apoia completamente na manutenção de tecido necrótico no organismo, o que não foi o caso)
“Todos os tratamentos de canal estão infectados. Não há exceção”. (com base em…)
“A chance de uma pessoa ter câncer (vários tipos) aumenta drasticamente se ela tem tratamento de canal. E a ignorância dos especialistas (leia-se dentistas, mais especificamente endodontistas) sobre esse fato comprovado cientificamente tem matado grande número de pessoas”.
“Um estudo mostrou que, de 5000 extrações de sisos, em 4999 havia cavitação porque o dentista não removeu todo o ligamento periodontal do alvéolo. Cavitações causam doenças neurológicas, esclerose múltipla, etc..” (percebam o alto número de casos. O filme está repleto de informações assim)
Que?
Um dos momentos mais WTF se dá quando uma atriz interpretando uma dentista loira gostosa tira as luvas e o gorro, balança seus cabelos e diz: “Seu dentista afirma que você precisa de um tratamento de canal? O que fazer além de sair correndo do consultório?”
O filme termina com o narrador e personagem principal praticando um milhão de esportes radicais e finalmente conseguindo transar com a moça com quem ele tinha brochado antes porque, vocês sabem… ele tinha um dente com canal tratado. Meninas, já sabem: se o boy falhar…
Pra acabar…
Termino este longo texto deixando uma frase dita por Dawn Ewing, dentista biológica, que representa bem o objetivo do filme: retratar o cirurgião-dentista que não compartilha de todas essas ideias como um profissional ultrapassado e mecanicista, desprovido da consciência de que o corpo humano é uma unidade e que suas partes se relacionam. Salvamos dentes, já as pessoas que vêm junto… só se der.
Como levar a sério esse filme?
Veja considerações da Associação Americana de Endodontia sobre a segurança e eficácia dos tratamentos endodônticos