A Língua Que o Paciente Fala

Fazer-se entender é fundamental, isso em qualquer profissão. Mas quando tratamos de saúde, é mais que fundamental: é vital. Quando damos uma orientação, mesmo nos parecendo simples, nem sempre o paciente entende. E o pior: quando ele não entende, quase nunca pergunta.

Tenho duas historinhas pra contar, uma é verídica e outra é ficção (que eu saiba). A verídica eu ouvi de uma professora na época de faculdade. Uma paciente dela, de origem humilde, contou certa vez que o médico havia lhe prescrito um creme vaginal… só que ele não explicou (ou ela não entendeu) a forma como o medicamento deveria ser usado. Depois de 1 semana, a senhora voltou ao consultório relatando vômito e fortes dores abdominais. Para a surpresa do médico, a paciente estava passando o creme NO PÃO e COMENDO. 😮

A segunda história é da série ER (Plantão Médico, no Brasil). Uma família de imigrantes (mexicanos, se bem me lembro) apareceu na emergência do County General Hospital. O pai carregava a filha nos braços, desesperado, depois de mais um episódio de convulsão da menina. Na anamnese, o médico (não me lembro qual deles) perguntou pelos medicamentos que ela tomava. O pai tirou um frasquinho do bolso e mostrou para o doutor, que perguntou se ela estava tomando a medicação como prescrita. O pai respondeu que sim, ONZE comprimidos por dia. Desconfiado da dosagem, o médico leu no rótulo: “ONCE A DAY”. Os poliglotas de plantão já entenderam o problema, não?! Once em inglês quer dizer “uma vez”, mas em espanhol é o número onze…

Sim, são casos extremos e, felizmente, não são a regra. Mas acontecem.

Fazer-se entender é fundamental.

No printscreen aí de cima vocês veem um bate-papo meu com a Suely Pavan (que gentilmente permitiu a reprodução da tela. Obrigada, Suely!). Como no Medo de Dentista eu falo principalmente me dirigindo aos pacientes, costumo usar termos familiares a eles. E paciente não fala “prótese total”, fala dentadura. Ela achou interessante o uso do termo, proibido em certa comunidade do Orkut. Certamente essa comunidade não deve ser dirigida a pacientes, mas a dentistas, o que explica o desdém pela expressão. Enfim, regras são regras, nada contra.

Mas ao falarmos com nossos pacientes é imprescindível sermos entendidos. Acho engraçado como alguns dentistas tendem a se sentir diminuídos usando expressões mais populares para os termos odontológicos… confesso que nunca dei muita bola pra isso. Claro, é preciso ter postura profissional. Se o paciente fala alguma barbaridade do tipo “preciso que o dotôr ponha massa no buraco”, você não precisa concordar com ele. Nesses casos, costumo primeiramente dar  o número de telefone de um pedreiro ótimo que eu conheço :). Depois, explico que não é bem assim, que é preciso remover a cárie, proteger a polpa e aí sim, usando uma resina, devolver a forma e função do elemento dentário. Bom, na verdade não é bem isso que eu digo… sai assim: “Depois que eu tirar a cárie vou proteger o nervo e fazer a restauração com aquela massinha da cor do dente, vai ficar bonito e o senhor vai poder morder de novo”. Algum problema?

Dentaduras, roachs, pivôs, pererecas, obturações, massinhas, pinos… WHATEVER.

Acho que o mais importante nessa história toda não é COMO se fala, mas não se esquecer COM QUEM se fala. Tentar sempre ser claro e procurar verificar se o recado foi dado, com atenção especial para as prescrições medicamentosas. Porque é fato: paciente só ouve o que quer. Você pode explicar cada detalhezinho sobre a co-responsabilidade dele no sucesso da osteointegração daquele implante, que a higiene é essencial (sob pena de perder o implante), e orientá-lo sobre como fazer isso para garantir que o sorriso dele fique lindo. Ele só ouve a parte: “seu sorriso vai ficar lindo”.

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Categoria: Profissão: Cirurgião-Dentista

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9 comentários

  1. Realmente, os pacientes ouvem o que querem!
    Sempre tento usar uma linguagem fácil para o paciente atender, e dia desses eu estava em uma das sessões da minha paciente de perio, onde em todas as sessões anteriores eu explicava o porquê da periodontite ter iniciado, que tudo começava com a gengivite, que era a inflamação da gengiva, enfim.. Ela chegou um dia me dizendo “sabe o que me disseram? que eu posso ter a tal de gengivite! será que eu tenho??”.
    Naquele dia me caíram todos os ‘butiás’ do bolso, pois eu já havia explicado tanto e ela me sai com essa. E eu juro que expliquei de forma muuito simples. Mas alguns pacientes não prestam atenção em muita coisa que falamos mesmo, infelizmente.

    1. É Adriana… essa vida de dentista não é fácil! Tem paciente que leva mais a sério o “diagnóstico” da vizinha… e qualquer recomendação que vier da sabedoria popular… tipo, bochechar “água de palmito”. 🙂

      Mas é isso… continuamos a cumprir nosso papel orientador, mesmo assim. A nossa tarefa mais importante, creio eu. Obrigada pela visita e pelo comentário. Abraço!

  2. Tempos atrás eu pedi ao Fabrício (@vidadedentista) perguntar pra galera como eles preferiam que eu escrevesse os textos – linguagem técnica ou popular – e venceu a forma popular. Semana passada em meu texto sobre “Clareamento” que você até linkou por aqui (Obrigada!) deixei claro em dois lugares que estava escrevendo leigamente, pois era a pergunta de uma amiga que não era dentista. Mesmo assim veio gente reclamar que eu estava escrevendo absurdos.
    Claro que num artigo escrito para dentistas não devemos escorregar no linguajar, mas para falar com o Seu José, ou a Dona Maricota? É chapa, perereca, ponte, canal, nervo….
    Adorei seu texto 😀

    1. Já fui acusada aqui no blog mesmo de ser “rasa” e de dizer um monte de “nada”, apenas por falar com a intenção de ser entendida pelo leigo. De minha parte, os “doutores” que me desculpem, continuarei sendo rasa como uma poça d’água… desde que o recado que eu quero dar seja passado de forma eficiente e atinja o público ao qual eu me proponho.

      Tem tanto blog/site bacana por aí com artigos científicos e cheio de termos difíceis pra quem é da área… ué, vão lá e não me torrem. 🙂

      Obrigada Gi, pela visita e pelo comentário. E “de nada” pelo link… coisa boa a gente linka mesmo. Beijo! 🙂

  3. Essa discussão de termos adequados vai existir por toda vida. Acho interessante na hora de explicar pro paciente usarmos uns termos mais “requintados”, mas sempre explicando O QUE significa na linguagem coloquial.
    Ontem mesmo eu expliquei pro meu paciente o que é uma “adesiva”, saiu mais ou menos assim: “Olha, seu José, é um dentinho de porcelana igual ao que o senhor perdeu, com duas asinhas que apoiam nos dentes do lado, como se fosse um suporte para o dente de mentira.” Ele entendeu, topou e já acertou metade do tratamento comigo! \o/
    Essas palavrinhas que substituimos os termos “chiques” fazem parte do nosso dia a dia e eu sou super a favor, ajuda no entendimento do paciente. Desde que sejam corretamente usadas, qual o problema?
    Mais um texto ótimo, Ana! Parabéns!

A área de comentários / perguntas está fechada. Agradeço a compreensão.

No plantão: Ana Tokus

Cirurgiã-dentista graduada pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Radiologia Odontológica e Imaginologia pela ABO-PR, convicta de que medo de dentista se combate (também) com informação. Diva-Boss do OdontoDivas e autora do Blog Raios Xis. Twitter: @AnaTokus e @medodedentista